Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

a bela e a fera

"Ela uma vez vira uma amiga inteiramente de coração torcido e doído e doido de forte paixão. Então quisera nunca a experimentar. Sempre tinha medo das coisas belas demais ou horríveis demais: é que não sabia em si como responder-lhes e se responderia se fosse igualmente bela ou igualmente horrível. Estava assustada como quando vira o sorriso de Mona Lisa, ali, à sua mão no Louvre. Como se assustara com o homem da ferida ou com a ferida do homem. Teve vontade de gritar para o mundo: 'Eu não sou ruim! Sou um produto nem sei de quê, como saber dessa miséria da alma.' Para mudar de sentimento ― pois que ela não os aguentava e já tinha vontade de, por desespero, dar um pontapé violento na ferida do mendigo ―, para mudar de sentimentos pensou: este é o meu segundo casamento, isto é, o marido anterior estava vivo." 

LISPECTOR, Clarice. A bela e a fera ou a ferida grande demais. In: ___. A bela e a fera. 5.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p.113. 

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