Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 17 de julho de 2011

o mundo-enigma


Blindness, de Fernando Meirelles, segue de perto o livro de José Saramago. Contudo, ele é a radicalização metafórica do livro, já em si problemática, pois a multidão de cegos, no livro, potencializa o grotesco, não como monstruosidade, mas como contingência. No filme, Fernando Meirelles faz algo análogo ao que tinha feito em Cidade de Deus, conforme a análise de João César de Castro Rocha: na escolha do ponto de vista, teria ocorrido uma mudança drástica, e dificilmente inócua, do foco narrativo na transposição do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, para as telas:

“Ora, qual o ponto de vista narrativo do filme Cidade de Deus? Em lugar de um narrador difuso e deliberadamente ambíguo, optou-se pela determinação do foco narrativo em primeira pessoa, atribuído ao adolescente Buscapé. No filme, ele parece ter dois problemas principais: perder a virgindade e deixar a favela graças a um possível emprego como fotógrafo. Essa extraordinária simplificação da personagem corresponde a um propósito duplo: tanto torna o horror da história mais palatável, por acrescentar uma dose de comédia, quanto associa o desejo do espectador de distanciar-se da realidade ao objetivo do rapaz de abandonar a Cidade de Deus. Ao mesmo tempo, no tocante à audiência internacional, a história da ‘primeira noite de um homem’ permite uma rápida associação com um clichê narrativo explorado à exaustão pelo cinema holywoodiano. Portanto, a escolha do foco narrativo é reveladora. A perspectiva de Buscapé estabelece uma série de mediações entre o espectador e as causas da violência: o ponto de vista do fotógrafo, a própria câmera; o desejo de Buscapé de escapar da verdadeira favela da Cidade de Deus. Esses vários filtros tornam a insuportável realidade da comunidade dominada pelo tráfico de drogas em material para um espetáculo dinâmico, inegavelmente divertido e muito bem feito. Assim, o voyeurismo de Buscapé, fotógrafo da própria comunidade, legitima nosso papel de voyeurs da miséria alheia. Se o foco narrativo do filme tivesse sido o de Zé Pequeno, o público teria louvado o filme Cidade de Deus? Como poderíamos, audiências de outras classes sociais, identificarmo-nos com o ponto de vista do criminoso ‘impiedoso’? A brutalidade sem mediações de Zé Pequeno relembra o ódio do ‘cobrador’, o personagem homônimo do conto merecidamente célebre de Rubem Fonseca." (AQUI)

No caso da transposição para o cinema do romance de Saramago, ocorreu um processo similar: apenas no final há a ilusão de uma voz narrativa em 3ª pessoa. Durante toda a epidemia o ponto de vista implícito, conspícuo e predominante é o da mulher que enxerga, portanto o da visão, o que atenua em parte o impacto do grotesco apresentado (e sublimado, diga-se). Tem-se uma visão sobre a cegueira, e não da cegueira, por mais paradoxal que isso possa soar. Com isso, o filme não consegue sair da metáfora (o que por seu turno é confortável), mas o espectador sai do cinema. Uma estudiosa já disse que a narrativa ficcional é “visão e cegueira”, sugerindo as limitações do ponto de vista da narrativa. No entanto, no plano metafórico, é de outra cegueira que se trata, muito provavelmente associada a questões de percepção, com muitas possibilidades a explorar. O filme Blindness coloca efetivamente os limites da percepção em foco? Não, porque o espectador confia na luz que está ali à mão, e que pode guiar. Nenhuma angústia, nenhuma possibilidade aberta em relação à opacidade do mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário