Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 11 de fevereiro de 2012

Clarice Lispector: cada um é a gafe de si

CRÔNICA SOCIAL

... Perfeito, perfeito, perfeito, o almoço. Poderia ser transportado na íntegra ― mesa, comensais, comida, garçons ― para outra casa, quiçá outro país, como se diz de obra de arte (que não conhece fronteiras). E a consciência de que é de cada um que depende a falta de erro. Reunião é uma reunião em torno de uma gafe que não é cometida? A tensão da perfeição crescendo, a pele do tambor esticando-se. Risco excitante. Para cada um, a gafe que não é cometida. Que gafe, afinal? Eu. Cada um é a própria gafe muda. Que sob o sorriso de sonho atrai, atrai, atrai sádica, estou chegando perto, numa sorridente tortura de pesadelo. Mais um minuto, mais um instante ― e ― e eu acontece. Entre o conhaque e a fumaça, a perfeição esticada cada vez mais tênue. Esporte perigoso, esse.

Clarice Lispector. Para não esquecer: crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.66-67.

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