Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

terteão

Afinal meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por haver gerado um maluco e deixou-me. Respirei, meti-me na soletração, guiado por Mocinha. (...) Gaguejei sílabas um mês. No fim da carta elas se reuniam, formavam sentenças graves, arrevesadas, que me atordoavam. Certamente  meu  pai usara  um horrível embuste naquela  maldita manhã,  inculcando-me a excelência do papel impresso. Eu não  lia direito, mas, arfando penosamente,  conseguia mastigar  os conceitos sisudos: “A preguiça é a chave da pobreza ― Quem não ouve conselhos raras vezes acerta ― Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.” 
Esse Terteão para mim era um homem, e não pude saber que fazia ele na página final da carta. As outras folhas se desprendiam, restavam-me as linhas em negrita, resumo da ciência anunciada por meu pai.
― Mocinha, quem é Terteão?
Mocinha estranhou a pergunta. Não havia pensado que Terteão fosse homem. Talvez fosse. “Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém”.
― Mocinha, que quer dizer isso?
Mocinha confessou honestamente que não conhecia Terteão. E eu fiquei triste, remoendo a promessa de meu pai, aguardando novas decepções.

Graciliano Ramos. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1995, p.99

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