Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Johnny Depp - Edward Scissorhands (Tim Burton, 1990)

Edward Mãos de Tesoura é uma fábula moderna sobre as fantasmagorias do capitalismo. Reunindo mitos da literatura fantástica e da ciência (a figura de Frankenstein), do cristianismo (o nascimento de Jesus e sua boa nova, mas também seu sacrifício), algo de Tempos Modernos de Charles Chaplin, e por fim a Bela e a Fera, o filme confirmou Johnny Depp não só como ator excelente para dar vida a personagens excêntricos, como também um ator com percurso e escolhas próprias, uma coisa talvez alimentando a outra. Trata-se de um filme tão significativo na história do cinema americano que seus 20 anos, conforme reportagem do Estadão (aqui), renderam a criação de um blog dos fãs em homenagem à criação de Tim Burton, Scissorhands20th (aqui), em que podem ser encontradas as mais diferentes recriações a partir do mito do homem com mãos de tesoura.

Neste filme, apesar de certo tom melodramático (uma concessão comercial, é certo) que pontua a entrada em cena da personagem feminina por quem Edward se apaixona (filha da revendedora Avon e narradora da história), o fato é que as mulheres jogam um papel decisivo na trama. Há dois cenários em contraste: o primeiro, a pequena "cidade" onde estão os moradores comuns, e que propositalmente é mantido com o aspecto de cenário (como a dizer, isso é uma construção cenográfica, não uma cidade), com suas cores chamativas e bizarras e seus tipos saídos de filmes B, e que funciona como um reloginho cronometrado; o outro, o castelo sombrio, gótico, pairando ao fundo, onde não parece haver dia ou noite, como se fosse um mundo mítico. A revendedora Avon, cansada de portas fechadas, vislumbra o castelo e para lá se dirige, com a mesma naturalidade de sua rotina habitual. E esse dado é importante, pois a rotina da cidade não comporta a beleza que Edward traz. A possibilidade do encontro entre a revendedora e Edward reside na inocência das duas partes, e a atuação de Johnny Depp é fundamental para que a história tenha de fato densidade. Com sua maleta de cosméticos, a bem-intencionada senhora leva-o consigo, para viver com sua família. Mas aqueles dois mundos não são comunicáveis, e por mais que a cosmética dos cremes tente disfarçar as cicatrizes, a naturalidade afetada com que a comunidade convive com aquele ser excêntrico, diferente, dá suas mostras quando Edward, apesar de competente com suas mãos de tesoura, não consegue ser assimilado pelo grupo, pela inocência em relação à engenhoca que move tudo, em especial o desejo das mulheres. Se são elas que o acolhem, são elas também que resolvem tornar sua vida impossível na comunidade. Nos bastidores, maridos que saem para trabalhar, fazendo lembrar de que matéria o mundo é movido, enquanto as mulheres, livres de maiores preocupações, entregam-se às mãos competentes de Edward na produção de cortes de cabelo artísticos. São elas, junto à pressão masculina para que Edward trabalhe de verdade e ganhe dinheiro, que acabam decidindo a sorte dele, pela rede de fofoca, intrigas e superstições que acionam. Uma combinação sórdida de capital e futilidade. 

Edward tem mãos técnicas, perfeitas para o trabalho, mas não pode amar. Quer dizer: casar-se, ter filhos, levar uma vida normal como as outras pessoas. Mas também expressar o amor em sentido largo, já que os gestos mais delicados costumam vir das mãos. Seu susto de viver é enorme. Ele expressa o amor como pode, como consegue, e sua inocência contrasta com o dado bruto da vida das pessoas. Mas essas mesmas pessoas parecem viver uma vida perfeitamente técnica, em que a beleza das esculturas criadas por Edward assombra e deslumbra. As únicas pessoas capazes de amá-lo (mãe e filha) são as que veem, para além da técnica, a beleza do que suas mãos criam. E aí é inevitável pensar na importância da postura bípede e da liberação das mãos para o surgimento e evolução do gênero Homo (já vão longe meus conhecimentos da Biologia). O que quero dizer é que nossas mãos são muito mais importantes que a correria da vida faz supor. Ter mãos técnicas, aptas ao trabalho, é tudo o que capitalismo deseja das pessoas. Mas não se pode esquecer, na engenhoca do criador de Edward, que uma das primeiras coisas de humano (em oposição à máquina) que ele resolve dar ao protótipo do que viria a ser Edward é um coração. Antes de conseguir terminá-lo, o criador morre, deixando-o órfão de alguma coisa não facilmente ponderável. Edward não quer ser mais um burguês: ele quer a arte que suas mãos podem criar e o amor que elas não podem oferecer, todo ele, por isso, concentrado nos olhos, tristes e assustados olhos.

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