Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

o aprendizado da escrita

Fundamentalmente, eu aprendi a escrever com duas pessoas: Sérgio Buarque de Holanda e Clarice Lispector. Se ele foi crítico e historiador e ela simplesmente escritora, portanto com pouquíssimas, em tese, possibilidades de intersecções (não obstante Sérgio Buarque tenha dedicado a Clarice um belo escrito, numa época em que quase ninguém falava dela), entretanto há nos dois a mesma coragem de se colocar no texto, na escrita, a mesma força unindo escrita e vida. A mesma força atravessando texto e vida. Certamente não foi na escrita controlada da redação escolar que aprendi a escrever: quando muito, aprendi a fazer bons textos, ainda que falaciosos. Nunca me esqueço o tema de redação do primeiro vestibular que prestei. Era na época da Constituinte, de forma que foi solicitado aos candidatos discorrer sobre o tema "Nação e Constituição". Devo ter mentido bem, pois a nota foi boa, e passei com folga. Continuei mentindo nas redações que fiz para outros vestibulares. E aprendi, quando me tornei professora da tal disciplina (redação), como os textos dos alunos/candidatos mentem, no sentido de dizer coisas em que não acreditam para obter uma boa nota. Nesse sentido, há um depoimento que considero fundamental, de Alcir Pécora, crítico literário que já militou no estudo do fenômeno "redação" no vestibular: "Na verdade, tratava-se de uma reprodução, da entrega de cada um ao mesmo passado ― de ninguém: reproduziam alguns poucos modelos, oficialescos e consagrados, com variações transparentes. Nesse caso, o erro mais grave, o problema maior, não estava na dificuldade de assimilação de algumas normas e exceções do português padrão, mas, justamente, na excessiva facilidade em se assimilar um padrão de linguagem, portanto, um padrão de referência para pensar e interpretar o mundo, para constituir a própria experiência. Pessoas vindas dos lugares mais distantes entre si, de situações econômicas não tão distantes assim, chegavam para o vestibular na hora marcada, tomavam o lápis e folha, e escreviam o esboço de um testamento em favor de uma mesma cartilha." (PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.15.) 

É claro que sempre poderá aparecer alguém e questionar o pressuposto básico desse texto: Mas Mariana, você acha mesmo que sabe escrever? Eu não disse que sabia, disse com quem aprendi algo que vou tateando. Retomando o conto de Clarice Lispector aqui postado, escrever é desobedecer.

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