Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 18 de junho de 2011

algumas palavras sobre crítica literária e criação

Depois do mestrado, naquela neblina muito comum quando se termina algo que trouxe grande satisfação, vagamente suspeitava que iria dedicar o doutorado à crítica literária. Não deu outra, e acho que não podia ter escolhido melhor crítico para estudar, Sérgio Buarque de Holanda. Quis estudar a crítica porque, no fundo, nunca abandonei a ideia de me dedicar à literatura, pela qual fiz enormes malabarismos, financeiros, pessoais, existenciais, à parte os deslocamentos geográficos, que no Rio de Janeiro fazem com que eu seja tomada por mineira, em Minas por natural de um estado sem identidade (que Minas deixou de anexar), e no Espírito Santo por intrusa, alguém que não pertence mais àquela geografia. O fato é que sou capixaba, ou pelo menos natural do Espírito Santo, e ninguém vai me tirar isso. E minhas origens explicam muito de minhas escolhas literárias: quis estudar "São Marcos" porque nele há mais mistérios que meu voo conseguiu penetrar (e basta ler o conto para ver o quanto o universo rural é diferente do urbano-letrado) e em seguida, na trilha de Sagarana e da década de 30, esbarrei em Sérgio Buarque, que morou em Cachoeiro de Itapemirim nos idos de 1926, depois de se desentender com os modernistas da fase heroica (ele nunca quis mesmo saber dessa história de herói), cidade para qual minha família se mudou para que os filhos, ou melhor, eu e minhas irmãs, estudássemos (quando o menino nasceu, a família já vivia na cidade, e entrava num vertiginoso processo de desintegração).

De forma que fui me tornando desgarrada, e ao mesmo tempo indiferente aos deslocamentos geográficos. Chegou a hora do mestrado? Toca para a UFES (Vitória-ES). Um lugar para o doutorado? Minas, ora, Belo Horizonte, UFMG. Então, em fevereiro do corrente, esse ciclo de deslocamentos terminou, junto com a defesa, enquanto vou dando minhas aulas no Colégio Pedro II, cujo ingresso motivou minha vinda para o Rio de Janeiro, cidade em que jamais imaginei um dia viver, mas que agora quero muito, porque combina Vitória e Belo Horizonte: tem amplos e belos horizontes e tem o mar, quem sabe uma coisa conjugando-se à outra. E tem Jacarepaguá, onde alguma coisa de roça subsiste.

Mas o fato é que, neste blog, vou postando poemas, trechos de obras que me dizem respeito, algumas impressões. Conheço a Carta aberta de Alexei Bueno aos poetas brasileiros, mas há uma arrogância excessiva em suas posições, ou seja, uma arrogância além do tolerável, já que alguma arrogância nas posições assumidas pela crítica parece mesmo vício da profissão, e não posso esquecer o quanto ouvi falar o nome de Luiz Costa Lima como criatura beirando o insuportável no âmbito do convívio profissional. Então, pelo menos no Brasil, a crítica raras vezes foi entendida como um ofício como outro qualquer, e nesse sentido eu aprendi deveras com Sérgio Buarque, e não me esqueço do modo como ele qualificou o crítico: personagem presunçoso, que se presume superior aos demais mortais na apreciação do objeto estético, literário: 

“Com isso, a preocupação de não sobrecarregar meus textos com nomes e citações de autores mal conhecidos da maioria dos leitores, sabendo que eles servem principalmente para impressionar os inseguros e os basbaques, e até com o cuidado de não mostrar tudo o que eu conhecia de tal ou qual matéria em discussão ― mas sem incorrer no risco de passar por mal informado, defeito que seria imperdoável em um crítico, personagem naturalmente presunçoso, pois que se faz passar, no fundo, por onisciente ―, procurava alijar de meus escritos tudo quanto tivesse um ar de coisa postiça, e dar, com isso, ao conjunto, um aspecto de razoável espontaneidade.” (Tentativas de mitologia, 1979, p.16).

Ora, também não me agrada passar por desinformada, mas não me apraz ficar exibindo listas de leituras em citações mal ajambradas. Então prefiro o Alexei Bueno poeta ao Alexei Bueno farol, ponta-de-lança, visiotário etc. Não suporto a Flora Sussekind, a nova sabe-tudo-tudo-sabe da crítica literária brasileira, e não movi uma linha da minha tese no que concerne às críticas que dirijo a ela. Não entro nas polêmicas que volta e meia dão uma sacudida no nosso marasmo intelectual, mas não sou indiferente a elas. Acompanho-as e vou aprendendo um pouco mais sobre os intelectuais à brasileira, como disse o Sérgio Miceli. O próprio Alexei Bueno publicou um livro sobre as polêmicas literárias no Brasil, além de ter encetado uma com sua carta aberta: então ele estava preparando o terreno para agir. Sérgio Buarque foi um grande polemista, e foi um prazer à parte ver o modo como defendia e atacava. Há outra polêmica recente, e creio que está para ser escrito o livro sobre o porquê de tanta e tantas contendas intelectuais num país cuja literatura tenta ganhar uma expressão própria (o que já foi, por outro lado, matéria de muitas polêmicas, senão a principal delas). Graciliano Ramos não se meteu em polêmicas, até onde sei, mesmo assim foi preso e, não obstante o aparente alheamento intelectual, criou obras-primas, que não passarão com o tempo.

As universidades, por seu turno, padecem de um estranho loteamento: os autores têm seus donos, proprietários que perecem ter registrado patente de seus estudos. O Silviano Santiago já foi melhor, entreviu o nosso entre-lugar, mas não fez menção às suas fontes, Homi Bhabha e Guimarães Rosa. E por aí vai. Farejo os grupinhos, as paróquias onde medra o clero literário, no dizer de Raduan Nassar. Luiz Costa Lima, numa fala em homenagem ao poeta mineiro Affonso Ávila, falou que a USP é máfia. E o que não é? Para quem não quer se alinhar/perfilar com isso, resta a blogosfera, onde também se corre o risco de passar por mal informado, e uma hora dessas, quem sabe, um livro publicado, a entupir um pouco mais as prateleiras das livrarias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário