Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 12 de junho de 2011

a libertação pelo sonho (escrito ao som de "Criaturas da Noite")

Sonhei esta tarde, ao tirar um cochilo, algo que beira o inenarrável. Minha família compareceu em peso, os fantasmas, os monstros, os ódios e sentimentos recalcados. Mas talvez também algum amor. Se tivesse que escolher um cerne para este sonho, diria que é a questão da luz e da escuridão. Acabo de me mudar para uma casa cuja sala tem uma iluminação muito bonita, mas que me preocupa um pouco quanto à fatura da Light. Preocupação fútil, provavelmente, mas estou mantendo, na maior parte do tempo, a sala numa semi-penumbra, até porque frequento-a pouco, trabalhando num quarto transformado em escritório, e durante o dia o sol dá conta do recado. Eu sei bem o que está acontecendo: é o fantasma da pobreza rondando, assumindo a cada vez uma face. Por que o fantasma da pobreza? À luz do dia, rondam-me as contas, compatíveis com o salário. Na escuridão da noite improvisada durante o dia explodem imagens de sombra invadindo a luz, tomando seu espaço, mas que lançam luz sobre as luzes da minha nova casa, uma casa que não é minha, mas da qual me sinto dona, pelo modo como tudo se deu, principalmente por saber que a mereço.

No sonho, estou numa casa em que as luminárias se multiplicam, de maneira caótica, e as luzes começam a queimar, a se apagar, e a casa vai sendo tomada pela escuridão. A casa parece ser feita de vários estratos, há pedaços de pano pendurados, é possível distinguir o telhado, e então já sei (agora sei) onde estou: estou na casa da minha infância (e na infância da minha casa), aquela em que nasci (literalmente), no interior do ES, cujo telhado era sem forro, então era possível ver por dentro as telhas francesas. Minha mãe aparece no sonho mudando a iluminação da casa, trocando as lâmpadas de lugar, e então não é mais a minha casa, e sinto ódio dela por isso: porque a casa vai ficando feia, estranha, escura, e tem algo estranho também acontecendo: alguém, cujo destino é ininteligível, vai morrer ou ser condenado a algo muito ruim. Este alguém aparece com a face do Mel Gibson (provavelmente porque eu não gosto dele, ou porque ele protagonizou/dirigiu filmes muito violentos, aliás um ator de qualidade bastante duvidosa, sem contar as notícias de violência contra mulheres). Fechado o parêntese "Mel Gibson": no final do sonho ele está indo em direção a um destino ingrato, impossível de ser relatado exceto no modo como as coisas se  passaram no sonho. Não sei o que ele é, o que faz/representa ali, mas meu pai aparece-me de repente dizendo qualquer coisa sobre, e é um consolo o que ele diz. O meu Hermógenes também aparece, mas não está ameaçador nem perigoso. 

Enquanto isso, vou tentando salvar as luzes (a iluminação) da casa, que vai ficando progressivamente escura, feia, com aspecto de pobre, não parecendo mais a casa de antes (qual casa?), e o contraponto é a casa dos meus tios na Barra da Tijuca, confundida com a sala da minha atual casa: há uma decadência qualquer em curso, não é mais o mesmo ambiente elegante de antes. Vejo que minha mãe fez uma gambiarra qualquer para iluminar (mal) um dos cômodos, que é seu quarto de costura (tão diferente de falar em quarto transformado em escritório...), há muitos panos pendurados, e o caos é tal que tenho certeza de estar diante de uma tela de Picasso. Sinto piedade pela minha mãe, ela está apenas tentando trabalhar. Eu continuo, no sonho, tentando conter o avanço da escuridão (cuja face é progressivamente a da pobreza), preciso comprar novas lâmpadas, mas há uma infinidade de luminárias suspensas, e um de meus irmãos aparece de relance dormindo, enquanto a criatura estranha vivida pelo Mel Gibson segue seu destino indescritível, e que parece ser muito ruim. Alguma coisa me sufoca, percebo que estou engasgando, com dificuldade de respirar, e desse embate acordo já no início da noite. Ao contrário do que eu esperava, a visita da minha mãe, ontem, foi rápida, as circunstâncias não permitiram que ela ficasse, e algo em mim desandou. No entanto, desse desarranjo veio um sonho libertador, com criaturas conhecidas e irreconhecíveis, e eu jamais poderei esquecer que vi no quarto de costura da minha mãe uma tela de Picasso. Continuo apreciando as criaturas da noite.

Nenhum comentário:

Postar um comentário