Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 16 de junho de 2011

até onde vai o que se pode contar

Eu já vivi coisas intensamente bonitas. Porque eram muito bonitas, sua melhor tradução era a alegria, que prima por um brilho diferente nos olhos, um desejo maior de viver. Ocorre que a tradução da tradução, ou seja, a expressão da alegria em palavras, nem sempre tem a sorte de encontrar, efetivamente, para dizer com Fernando Pessoa, ouvidos de gente. Um desastre desses me aconteceu, em circunstâncias que tornaram tudo um pouco mais insólito. E se quem causou a alegria havia deflagrado-a justamente por sua singularidade, tanto mais detestável se tornou o outro lado da ponta, a quem entreguei, em forma de palavras, minha alegria. É incrível como as pessoas incapacitadas para a alegria não suportam vê-la na expressão do outro, no outro que a experimenta, e fazem de tudo para roubá-la, não para tomá-la para si, porque isto é impossível, mas para jogá-la na primeira lata de lixo, com as quais mantêm um pacto de higienizar o mundo por meio da vigilância, qualquer que seja ela. Hoje, ao voltar para casa, ao me ver temporariamente suspensa do mundo num meio de transporte, lembrei-me de como foi estranho ter frequentado esses extremos: o detestável se tornando mais detestável em contraste com o  agradável; este tornando-se mais desejável pela presença do detestável. Eu já vivi coisas muito bonitas, mas precisei pagar o preço da interpretação (aquela que arranca sentidos feito fórceps) para saber que nem tudo pode ser contado, que a beleza é rara. Como falar (deixar falar) a beleza se as sentinelas estão sempre vigilantes? Que ao menos seja permitido dizer que já se viveu coisas intensamente belas.

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