Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

"São Marcos" - Guimarães Rosa

“Mas, como eu contava ainda há pouco, eram sete horas, e eu ia indo pela estrada, com espingarda, matula, manhã bonita e tudo. Tão gostosos a claridade e o ar ― morno cá fora, fresco nas narinas e feliz lá dentro ― que eu ia do mais esquecido, tropica-e-cai levanta-e-sai, e levei um choque, quando gritaram, bem por detrasinho de mim:
― ’Güenta o relance, Izé!...
Estremeci e me voltei, porque, nesta estória, eu também me chamarei José. Mas não era comigo. Era com outro Zé, Zé-Prequeté, que, trinta metros adiante, se equilibrava em cima dos saltos arqueados de um pangaré neurastêmico.
Justo no momento, o cavalicoque cobreou com o lombo, e, com um jeito de rins e depois um desjeito, deu com o meu homônimo no chão.” (ROSA, João Guimarães. Sagarana. 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, p.228-9.)

Meu grande companheiro na literatura é um narrador anônimo e cego. Cerca de seis anos depois de ter defendido minha dissertação de mestrado, descubro que meu amor por “São Marcos”, sexta narrativa de Sagarana, continua intacto, até aumentou. Os muitos capítulos tentando dar conta de um conto que me escapava. O título aloprado da dissertação: “Um mango vale mil contos: ‘São Marcos’, de Guimarães Rosa ― a narrativa na fronteira das culturas”. O fato é que meu narrador estimado, além de racista e preconceituoso, e de ficar cego no meio de uma mata por força de um vodu lançado pelo seu desafeto João Mangolô, tinha uma particularidade: não tinha nome definido: “nesta estória, eu também me chamarei José”, diz ele  também José, como o outro José/Izé; ou também José, além de João,  já que afirma ser o joão-de-barro seu xará. Um xará João e um homônimo José. Um termo erudito e outro popular. Dois nomes comuns, que remetem ao anonimato (“zé-mané”, “joão-ninguém”) para um anônimo, um dos narradores mais esquisitos criados por Guimarães Rosa. Um estranho, um desconhecido. 

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