Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Pedro Kilkerry

É o silêncio... 

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa. 
Olha-me a estante em cada livro que olha. 
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha. 

Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa. 
Penso um presente, num passado.  E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas... Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,
Asa que o ouvido anima...
E a câmara muda. E a sala muda, muda...
Afonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima...
.....................................................

E abro a janela. Ainda a lua esfia
Últimas notas trêmulas... O dia
Tarde florescerá pela montanha. 

E oh! minha amada, o sentimento é cego...
Vês?  Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego. 

Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira. Org. Francine Ricieri. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Lazuli Editora, 2007, p.181-182.

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