Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

jardim de infância

A coisa do errante navegante. Tenho o luxo de poder dizer que morei em três das quatro capitais do Sudeste  — Vitória, Belo Horizonte e agora Rio de Janeiro, dessa vez pra ficar. Um detalhe apenas: a cada vez que cheguei num novo lugar, tive que começar tudo de novo, e aí aprendi uma coisa fundamental: a diferença entre os que trazem e os que não trazem amigos do jardim de infância. Pertenço ao segundo grupo, por uma razão muito simples, da qual decorrem as outras que se podem supor: no interior onde nasci a escolarização começava no primeiro ano primário, não havia pré-escola como agora. Quer dizer: a pré-escola ia se fazendo no aprendizado estranho da vida. Meu jardim de infância foi outro... Meu pai era lavrador, e trabalhava um pouco longe de casa, de forma que às vezes levávamos o almoço dele, para que ele não tivesse sempre que se alimentar com uma marmita fria já bastava o trabalho pesado, ingrato, mal remunerado, de sol a sol. O lugar em que ele trabalhava se chamava “Grota Funda”, e até chegar lá dentro, na plantação, havia todo um caminhozinho que minha memória recompõe com bastante dificuldade, talvez alguns trechos sejam mesmo imaginados ou sonhados. Mas no trajeto havia uma água que corria, menos que um regato, um trecho de aguinha transparente que se destacava da vegetação, correndo por sobre pedras. Devia ser água próxima de alguma fonte ou nascente. Havia um frescor muito especial naquele lugar, onde eu me detinha, antes ou depois de levar a marmita, para olhar a água correndo cristalina entre pedras e vegetação. Lá foi meu jardim da infância. E há um imponderável nisso tudo, que o discurso não comporta.

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