Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 5 de outubro de 2010

O naufrágio como metáfora: Renato Lessa

A primeira aparição dos presentes devaneios [...] tomou como imagem central e deflagradora de uma possível reflexão a respeito da condição humana a metáfora do naufrágio. A sugestão decorreu da leitura de um extraordinário ensaio de Hans Blumenberg [...], para quem os humanos apresentam a totalidade de seu estado no mundo, de preferência no imaginário da vida marítima“O homem conduz a sua vida e ergue as suas instituições sobre terra firme. Todavia, procura compreender o curso de sua existência na sua totalidade, de preferência, com a metáfora da navegação temerária.” Uma das possibilidades desse jogo metafórico é a da expressão igualmente metafórica de uma ordem que se lhe opõe. O próprio Blumenberg indica-lhe o sentido: a metáfora do naufrágio ― na verdade ― é uma das possibilidades da metáfora maior da navegação como forma de denominar a própria existência: o naufrágio, nesse campo de representação, é algo como a consequência legítima da navegação. A presença do duplo metafórico materializado no par navegação-naufrágio, no pensamento ocidental, parece ser imemorial.

LESSA, Renato. O que mantém um homem vivo? (II) Novos devaneios sobre algumas transfigurações do humano. In: NOVAES, Adauto (Org.). A condição humana. Rio de Janeiro: Agir; São Paulo: SESC SP, 2009, p.129. 

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