Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 9 de outubro de 2010

"Queda que as mulheres têm para os tolos" – Machado de Assis (1861)

Nota do editor Oséias Silas Ferraz:

A declaração de que se tratava de tradução seria um artifício para disfarçar a autoria [...]. José Paulo Paes não entra em detalhes, mas é dos únicos a falar em tradução, a partir do original de um certo Olona, autor satírico espanhol que escreveu peças com o mesmo tema. A dúvida, no entanto, existia e só foi esclarecida pelo professor francês Jean Michel Massa, em Machado de Assis traducteur, ensaio que compõe a segunda parte de sua tese de doutoramento [...]. Apenas a primeira parte da tese foi publicada no Brasil, A juventude de Machado de Assis. Devido talvez às questões embaraçosas (para a crítica) levantadas sobre as traduções de Machado, o ensaio nunca foi publicado e permanece pouco divulgado. [...] Pesquisador atento, Massa enumera os textos que serviram de base a Queda... O Petit traité de l’amour des femmes pour les sots (1788), de autoria presumida de Champcenets (citado na parte XII de Queda...) apresentaria afinidades, mas não seria ainda o texto traduzido. Esse é finalmente identificado por Massa: De l’amour des femmes pour les sots, publicação anônima atribuída a Victor Henaux [...]. Encerra-se, assim, a polêmica sobre a originalidade do texto: ao contrário do que ficou estabelecido pela crítica machadiana, Queda que as mulheres têm para os tolos é uma tradução.” (FERRAZ, Oséias Silas. Nota do Organizador. In: ASSIS, Machado de. Queda que as mulheres têm para os tolos e outros textos. Belo Horizonte: Crisálida, 2003, p.9-10.)

A pesquisadora da Unicamp Ana Cláudia Suriani da Silva afirma que o estudioso francês não forneceu dados conclusivos que sustentem seu argumento, mas corrobora a tese da tradução, propondo uma versão bilíngue com o original e a versão machadiana: “A edição bilíngue de Queda que as mulheres têm para os tolos que eu publico pela Editora da Unicamp neste ano do centenário da morte do escritor segue intencionalmente os princípios tradicionais da crítica textual para oferecer uma base mais segura para pesquisas futuras. Estabelece definitivamente o texto traduzido por Machado e traz em espelho o texto de Victor Hénaux, o que permite que original e tradução sejam lidos lado a lado por um público que agora não se restringe mais ao próprio Machado e a uma meia dúzia (ou menos) de críticos.(Jornal da Unicamp).

Obs: segue a transcrição das duas páginas iniciais conforme edição da Crisálida. O editor manteve a grafia original do texto.

QUEDA QUE AS MULHERES TÊM PARA OS TOLOS

Advertencia

Este livro é curto, e talvez devera sel-o mais.
Desejo que elle agrade, como me sahe das mãos; mas é com pezar que me vanglorio por esta obra.
Fallar do amor das mulheres pelos tolos, não é arriscar ter por inimigas a maioria de um e outro sexo?
Diz-se que a materia é rica e fecunda; eu accrescento que ella tem sido tratada por muitos. Se tenho, pois,  a pretenção de ser breve, não tenho a de ser original.
Contento-me em repetir o que se disse antes de mim; minhas paginas conscienciosas são um resumo de muitos e valiosos escriptos. Propriamente fallando, é uma comparação scientifica, e eu obteria a mais doce recompensa de meus esforços, como dizem os eruditos, se inspirasse aos leitores a idéa de aprofundar um tão importante exemplo.
Quanto á imparcialidade que presidio a redacção deste trabalho, creio que ninguem a porá em duvida.
Exalto os tolos sem rancor, e se critico os homens de espirito, é com um desinteresse, cuja extenção facilmente se comprehenderá.
  
I

Il est des nouds secrets, Il est des sympathies.

Passa em julgado que as mulheres lêem de cadeira em materia de fazendas, perolas e rendas, e que, desde que adoptam uma fita, deve-se crer que a essa escolha presidiram motivos plausiveis.
Partindo deste principio, entraram os philosophos a indagar se ellas mantinham o mesmo cuidado na escolha de um amante, ou de um marido.
Muitos duvidaram.
Alguns emittiram como axioma, que o que determinava as mulheres, neste ponto, não era, nem a razão, nem o amor, nem mesmo o capricho; que se um homem lhes agradava, era por se ter apresentado primeiro que os outros, e que sendo este substituido por outro, não tinha esse outro senão o merito de ter chegado antes do terceiro.
Permaneceo por muito tempo este systema irreverente.
Hoje, graças a Deus, a verdade se descobrio: veio a saber-se que as mulheres escolhem com pleno conhecimento do que fazem. Comparam, examinam, pesam, e só se decidem por um, depois de verificar nelle a preciosa qualidade que procuram.
Essa qualidade é... a toleima!

ASSIS, Machado de. Queda que as mulheres têm para os tolos. Belo Horizonte: Crisálida, 2003, p.17-19.

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