Por Sérgio Alcides (Portal Literal)
Ninguém exigiu tanto da poesia no Brasil da segunda metade do século XX quanto Mário Faustino. Para ele, fiel aos ensinamentos de Orfeu, o poeta deveria ser um demiurgo, intermediário entre os homens e os deuses. Mais do que um organizador da linguagem, seria aquele que a torna orgânica, vivente, ao mesmo tempo em que transmuta o vivido em escrito: "Vida toda linguagem" ― é a fórmula mágica que abre um de seus poemas mais conhecidos. Em plena onda desenvolvimentista dos anos 1950, quando o país ingressava na era da televisão e das auto-estradas, Faustino trazia de volta à vanguarda o mito do poeta visionário, capaz de fazer da poesia "o mais exato, o mais perene e o mais eficaz meio de comunicação".
É claro que o defensor de tão vigorosas proposições era então um jovem. Muito infelizmente, o destino impediu que ele realizasse sua grande aspiração. Confirmou-se em sua fulgurante trajetória de jornalista, poeta e crítico literário o velho adágio: os amados dos deuses morrem cedo. Tinha 32 anos quando, em 1962, o avião em que viajava para o México bateu no Cerro de la Cruz, nos Andes, a poucos quilômetros da primeira escala, em Lima.
Quarenta anos depois, sua obra inacabada retorna às livrarias ― pela primeira vez remetendo ao título do seu único livro publicado em vida: "O homem e sua hora e outros poemas" (Companhia das Letras). Segundo a organizadora da edição, Maria Eugenia Boaventura, da Unicamp, trata-se do primeiro volume de uma série de cinco, que também recolherá os textos de crítica, teoria e tradução do autor. O projeto é grandioso: teremos finalmente uma vista de conjunto da obra completa de uma figura tão apaixonante. E é possível que isso estimule a publicação da correspondência do poeta, importantíssima, sobretudo a trocada com o filósofo Benedito Nunes, seu mais próximo interlocutor e amigo.
É difícil imaginar o efeito que o reencontro com Mário Faustino pode ter sobre as novas gerações, e principalmente sobre os "novíssimos". Na verdade, ele nunca perdeu o grande poder de atração e a autoridade que conquistou entre os poetas mais jovens, desde que se tornou conhecido em todo o país como organizador da página intitulada "Poesia-Experiência", no hoje lendário (e quase inacreditável) Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Encarnação do que os vanguardistas chamavam de "poeta-crítico", ele ainda estava para completar os 26 anos quando começou a editar semanalmente, entre 1956 e 1958, seu workshop em papel-jornal. Tinha chegado pouco antes ao Rio – tendo nascido no Piauí e se formado em Belém do Pará ― e já era respeitado pela publicação, em 1955, de "O homem e sua hora".
Sob o lema (inspirado em Ezra Pound) "Repetir para aprender, criar para renovar", a página semanal de Faustino incluía várias seções dedicadas à divulgação, à crítica e à tradução de poesia de todos os tempos e de poetas contemporâneos. Só uma parte desse vasto esforço chegou a ser publicada em livro ― nos volumes "Poesia-Experiência" (Perspectiva) e "Evolução da poesia brasileira" (Casa de Jorge Amado). Quanto às traduções de poemas, também apenas algumas apareceram na primorosa edição de 1985, "Poesia completa, poesia traduzida" (Max Limonad), organizada por Benedito Nunes.
Enquanto esperamos o lançamento dos próximos volumes da série, "O homem e sua hora e outros poemas" já nos dá bastante material para reflexão. Por um lado, é inevitável uma especulação sobre o prejuízo deixado pelo desastre aéreo de 1962 para a poesia brasileira. Com ele, fechou-se para sempre o caminho estritamente pessoal aberto por Faustino; em tempos de crise e polêmica, era um caminho alternativo entre o concretismo e a reação anticoncreta ― tola querela que até hoje polariza o debate poético no país. Por outro lado, nota-se agora um paradoxo em relação à poesia faustiniana: boa parte dela ressurge simultaneamente envelhecida e rejuvenescida. Muito tempo (de passado) e pouco tempo (de idade) deixaram aqui a sua marca.
A solene grandiloqüência dos versos cadenciados e impecáveis de "O homem e sua hora" não disfarça, hoje, o sabor de coisa antiga, a ser admirada com reverencial distanciamento. Por exemplo, no poema-título do livro: "(...) Aqui, / Sábia sombra de João, fumo sacro de Febo, / Venho a Delfos e Patmos consultar-vos, / Vós que sabeis que conjunções de agouros / E astros forma esta Hora". Pretendendo elevar-se acima do mundo e do tempo, os versos acabam soando como se datassem de outro tempo e de outro mundo. Já com os poemas mais experimentais da segunda fase, contemporâneos da militância na página "Poesia-Experiência" e tributários do diálogo com a vanguarda concretista, o carimbo da data não marca tanto o desejo de atemporalidade quanto o engajamento num projetado tempo futuro; por exemplo nos jogos verbais de versos como "e pelos pêlos do cão do chão" e "as uvas e as luvas / alvas da nuvem".
Paradoxalmente, a mesma grandiloqüência, numa fase, e o mesmo engajamento, na outra, traem um certo entusiasmo juvenil, a excitação pela descoberta do próprio talento, com aquela ânsia de elevar a voz à altura de seus grandes ídolos de leitor de poesia, desde Homero a Mallarmé, de Píndaro a Eliot. O excesso de alusões literárias e citações em latim e grego demonstra a admiração pela obra pantagruélica de Pound, mas não deixa de indicar a fantasia de participação direta nesse universo livresco, o que no fundo afasta o poeta de seus melhores temas ― que são o amor (ou, sobretudo, a falta dele) e a morte (a literal, não a "literária" dos clássicos). De certo modo, o que Haroldo de Campos chamou de "impaciência órfica" de Mário Faustino, "contra o espírito do tempo", é exatamente o que envelheceu e rejuvenesceu na sua sempre comovente poesia.
Mais paradoxal ainda é que esse orfismo afetado e imaturo, com a decorrente opção pelo tom sublime e às vezes preciosista, permitiu ao poeta alguns acertos que permanecem impressionantes ― porque de fato não têm idade. Seja na expectativa de completude amorosa ― "Amor feito de insulto e pranto e riso, / Amor que força as portas dos infernos, / Amor que galga o cume ao paraíso" ― seja no pressentimento da finitude mortal – "Eis a quinta estação, quando um mês tomba, / O décimo-terceiro, o Mais-Que-Agosto". É o Faustino ávido por amor que, no entanto, corteja a morte, como único meio de acesso real ao absoluto, numa espécie de erotismo cósmico: "Não morri de mala sorte, / Morri de amor pela Morte".
Também é tão solene quanto certeira a "Balada (em memória de um poeta suicida)" que é o mais antológico poema de Faustino, desde que serviu de inspiração e epígrafe para uma das obras-primas de Glauber Rocha, "Terra em transe", de 1967. "Não conseguiu firmar o nobre pacto / Entre o cosmos sangrento e a alma pura. / Porém, não se dobrou perante o fato / Da vitória do caos sobre a vontade / Augusta de ordenar a criatura / Ao menos: luz ao sul da tempestade. / Gladiador defunto, mas intato / (Tanta violência, mas tanta ternura)".
Esta primeira estrofe resume o lirismo feito de exaltação e fracasso que marca o melhor da poesia faustiniana. O caos revém contra o afã de ordem e beleza próprio da forma poética. Mas a violenta frustração do "nobre pacto" é justamente a garantia final de cumprimento da missão da poesia enquanto meio de conhecimento do mundo, do cosmos e de si. O fracasso de Orfeu completa o mito. Como explica Benedito Nunes em seus ensaios sobre a obra do amigo, opera aí o princípio clássico do amor fati – uma aceitação do destino e da necessidade que representa, no dizer de Nietzsche, um grande "sim" à vida e suas contingências.
Mas essa afirmação perde o fôlego sempre que precisa competir, na poesia, com outra mística: a da forma acabada e da tradição literária. Isso talvez explique por que Faustino não chegou a publicar um segundo livro nos sete anos de vida – tão ativa! – que teve após o lançamento de "O homem e sua hora". O poeta-crítico que assinava combativos artigos no "Jornal do Brasil" parecia perfeitamente seguro sobre o melhor a fazer. Mas o poeta-mesmo era bem mais hesitante: seus "Esparsos e inéditos" reunidos em livro pela primeira vez em 1966 mostram alguns poemas realmente memoráveis, mas o conjunto aponta para várias direções diferentes, e não é fácil enxergar ali um projeto de livro próximo do acabamento. Pelo menos não com a organicidade e o rígido planejamento reclamado pelo poeta-crítico, sob forte influência do proselitismo de Pound.
A monumentalidade in progress dos "Cantos" do poeta americano, poliglóticos e eruditíssimos, impressionou Faustino. Junto com o núcleo concretista de São Paulo – os irmãos Campos e Décio Pignatari ― o piauiense estava entre os primeiros leitores brasileiros que mostraram uma compreensão mais ampla da experiência poundiana. Ao mesmo tempo, também se deixara impactar pela publicação, em 1952, de outro projeto monumentalizante, a "Invenção de Orfeu", de Jorge de Lima, com seu profuso desfile de imagens entre o barroco e o Kitsch. Esses dois modelos de gigantismo fizeram sombra ao rapaz que, no entanto, escreveria em módicas 14 linhas alguns dos sonetos mais bonitos da lírica brasileira. E ele se convenceu, então, da necessidade do largo fôlego versificador: "Toda a minha obra tende à criação de poemas longos", declarou, mais de uma vez. Hoje, cabem as perguntas: era mesmo uma tendência ou uma auto-exigência? tal inclinação partia da sua escrita ou das suas leituras? tratava-se, para ele, de uma questão realmente poética ou apenas "literária"?
Os inéditos divulgados por Benedito Nunes em 1966 mostram algumas tentativas, sempre inacabadas, de prolongar o canto das Musas. Junto com elas, ficamos conhecendo alguns dos planos redigidos pelo autor. Como nessa espécie de "pauta" anotada em 1959: "1º) Conferir à poesia uma vasta medida, uma dignidade que lhe permita competir com as outras formas de cultura contemporâneas, sobretudo a arquitetura e a ciência; 2º) Fazer com que a poesia possa satisfazer de algum modo as necessidades, digamos, metafísicas do homem contemporâneo". É o poeta-crítico da página dominical em ação sobre si mesmo: a poesia se tornava uma verdadeira tarefa de Hércules para ele.
A mesma ambição desmesurada aparece em "A reconstrução" ― poema que, abandonado, não chegou a ficar tão longo quanto seu minucioso plano. Depois de invocar toda uma academia de ídolos ― Virgílio, Dante, Camões e cia. ― o planejador anota: "Identificar a procura da poesia com a procura do graal". Essa demanda, no fim, aparece também associada ao desejo amoroso: "Descrever minha busca do amor, todas as minhas tentativas. O caminho. Recordar a Divina Comédia. Recordar D. Quixote". Por um lado, a escrita de um simples poema se converte numa epopéia, sendo a poesia comparada a um vaso santo, tão raro quanto desaparecido. Por outro, espera-se encontrar o amor só depois de atravessar os círculos do inferno e combater os moinhos de vento.
Não deve ser um acaso que os poemas mais belos e acabados de Faustino, escapando ao plano, tratem exatamente do amor fracassado, da rejeição, do abandono e do anseio (real, sexual) de amar. É o caso da "Ballatetta" ("Por não ter esperança de beijá-lo / Eu mesmo, ou de abraçá-lo, / Vai tu, poema, ao meu / Amado, vai ao seu / Quarto dizer-lhe quanto, quanto dói / Amar sem ser amado, / Amar calado"). E também dessa pequena jóia que é o "Soneto": "Necessito de um ser, um ser humano / Que me envolva de ser / Contra o não ser universal, arcano / Impossível de ler". Em ambos os casos, são poemas que não deixam de remeter aos acervos eruditos do autor, em particular ao lirismo medieval italiano (a escola toscana, Guido Cavalcanti, o Dante da "Ballatetta dolente"). Mas, neles, a remota evocação de formas tradicionais vem acrescentar ao sofrimento amoroso o distanciamento por onde se instila a suave ironia que é sua marca moderna.
Essas peças que ele próprio talvez considerasse "menores" formam hoje a parte realizada da curta obra de Mário Faustino, e contrastam com a sua perseguida aspiração ao poema longo, à medida épica e ao tom grandioso. É por causa delas, com sua bem-trabalhada despretensão, que se pode dizer também dele que "a vida é curta, a arte é longa". Nos seus últimos anos, porém, o poeta parece ter antevisto uma possibilidade de conciliação entre o lirismo breve e as estruturas de largo fôlego, com a proposta de uma obra-em-progresso composta de fragmentos a serem encadeados por meio de uma técnica inspirada na montagem cinematográfica. "Se tenho lápis e papel à mão, vou escrevendo em bruto da maneira que em cinema se tomam takes que mais tarde serão montados" ― escreveu ele em carta de 1960 a Benedito Nunes.
Foi o filósofo quem transmitiu a idéia para os leitores: "seria a forma total nascendo do intercurso de formas parciais, (...) num processo de recorrência, no qual cada parte ensejasse o todo e o todo preexistisse em cada parte". Restaram apenas 18 fragmentos, sem indicações seguras sobre sua montagem. Considerados isoladamente, eles finalmente superam a adolescência órfica do poeta: são poemas muito mais espontâneos do que tudo o que ele jamais escrevera antes, mais livres de figuras mitológicas e bíblicas, bem como do cânone em peso da poesia ocidental.
Mas nem por isso serão composições menos experimentais, deixando de lado a megalomania de Pound, mas incorporando o seu princípio de escrita ideogrâmica (também reivindicado na época pelos concretistas): "meninada apostando corrida com chuva / menino adiante / atrás a chuva oblíqua". Ocasionalmente, a nota erudita reaparece, mas (como em Manuel Bandeira) nunca como decoração exterior; por exemplo no dístico "Gaivota, vais e voltas, / gaivota, vais – e não voltas", que ecoa distantes cancioneiros. Pelo menos um desses fragmentos – "Juventude ― / a jusante a maré entrega tudo" ― pode ser considerado uma obra-prima, com todo o seu ar de coisa inacabada, aberta, em movimento, incapaz de monumentalismo.
Por uma ironia do destino, o poeta que tanto sonhou com o poema longo deixou uma obra em fragmentos. Apaixonado pela idéia de perfeição, mas fadado ao imperfeito, acabou se voltando para essa busca do perfeito na imperfeição que é a escrita fragmentária: segundo Schlegel, "um fragmento deve ser como uma pequena obra de arte, separado do mundo ao redor e em si mesmo perfeito e acabado como um ouriço". O desastre interrompeu o já pensado antes como obra de interrupção e retomada, impedindo o autor de experimentar a idéia da montagem. Faustino, que tanto almejou como poeta-crítico um poema absoluto e cabal, terminou aproximado à concepção bem menos retumbante de um poeta que ele parece não ter conhecido, pois estava fora das prescrições da vanguarda brasileira no momento. Escreveu Paul Celan, seu contemporâneo: "O poema absoluto ― não, com certeza ele não existe. Mas em todo verdadeiro poema, mesmo no menos ambicioso, existe essa questão inelutável, essa demanda exorbitante". Mas, se até um fragmento participa em potencial do almejado poema absoluto, então estamos livres da obrigação de atingi-lo sozinhos.
O caráter fragmentário da obra faustiniana dificulta bastante a tarefa de seus editores: não pode haver uma edição definitiva de uma obra inacabada. O volume agora lançado nos deixa ainda mais ansiosos por uma edição crítica, que indique e comente de maneira mais rigorosa suas fontes e as variantes. Maria Eugenia Boaventura presta um bom serviço ao acrescentar 13 poemas ao corpus do autor, mas infelizmente não escreve uma palavra sequer sobre sua origem e estado de acabamento. Também o problema da ordem dos textos mereceria uma reflexão mais detida ― não sendo de todo satisfatório o critério de ordem decrescente da data para uma obra que, além de inacabada, se pretendeu "em progresso".
Algumas falhas de revisão prejudicam o resultado final. Há muitas gralhas espalhadas pelo texto, como em "Prefácio" ("as traduções" em vez de "a traduções"), "O homem e sua hora" (uma vírgula na expressão "turris eburnea", "rumos ao" em vez de "rumo ao", "autora" em vez de "aurora") e "Rupestre africano" ("acorda" em vez de "a corda"). O texto mais comprometido é o da famosa "Balada", que teve a estrofação confundida e ganhou uma vírgula inexistente nas edições anteriores, sem o devido esclarecimento; o subtítulo incorporou erro da edição de 1985 ("uma poeta suicida" em vez de "um"). Por fim, pela terceira vez se perdeu a oportunidade de grafar corretamente o título de "Ballatetta".
Sérgio Alcides é poeta, pesquisador e professor-adjunto da UFMG, autor de “Estas paisagens: Cláudio Manuel da Costa e as paisagens de Minas” (Hucitec, 2003), "Nada a ver com a Lua" (Sette Letras, 1996) e "O ar das cidades" (Nankin, 2000).
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