Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


segunda-feira, 20 de junho de 2011

m a d r u g a d a

Adentro madrugada corrigindo redação, e de repente noto na rua o silêncio. Então fui discernindo ao longe, aos poucos, uma voz conhecida, a voz de Roberto Carlos, infalível para uma noite de domingo já expirada, madrugada espreitando no relógio. Era um Roberto Carlos assim triste, distante, aquele que tocava nos longes dos 70, e não adianta que serei incapaz de lembrar qual era mesmo a música. Mas como todas as músicas de Roberto Carlos parecem ser mesmo uma mesma música tocando ao longo do tempo, com indiscutível queda da já escassa qualidade, eu vou me permitir um momento assim ultra brega, ou ultra qualquer coisa que caiba numa madrugada fria em que uma voz familiar, cortando o silêncio da noite e distraindo do trabalho, traz mais do que se podia prever ou imaginar (é sempre assim...), com repercussões inaudíveis, exceto pelo que consigo dizer a mim mesma. Porque a distância já se faz muita, intransponível, e se hoje tenho madrugadas de trabalho, minha vida já teve manhãs de infância, a salvo numa distância em que mantenho intacta, Deus sabe a que custo, a menina que fui. Precisei crescer para descobrir que gostava dela, apesar de desengonçada e um tanto distraída. De forma que esta música, como diziam os locutores de rádio, vai para ela (e há camadas e camadas de segredos entre nós, entre os nós que a vida foi providenciando), a menina que fui, e que teimo em não deixar para trás. Roberto Carlos é brega? Depende do sentido que cada um empresta à palavra amor.

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