Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 21 de junho de 2011

relendo grande sertão: veredas (XIV)

“Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas ― e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 116.

É de notar a intenção malograda de diálogo na fala sequestrada pelo narrador: a função do interlocutor nesta escuta é bastante duvidosa, antes confirmar o que a personagem deseja ouvir de si ― fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. A palavra, aí, é uma posse não compartilhada, ao contrário do que se diz sobre a língua, como transitividade. A palavra cria sua própria não transitividade, e polidamente agradece o silêncio do outro, o grande sertão (desertão) da linguagem. A única brecha por onde se respira aí são as incertezas do narrador: nelas ele se afirma ou nega, se interroga, afirmando que o que ele quer falar lhe escapa, ninguém sabe, só umas raríssimas pessoas. Então todos não se entendem no deserto da linguagem, no não saber baldado em certezas. Há poucas veredas, veredazinhas, por onde transitar.

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