Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


segunda-feira, 20 de junho de 2011

Mário Faustino: "não somos daqui"

...

Ao fundo a ilha, movediça e torta,
de nossa infância,
ao fundo o ferro duro,
a fossa, o sapo, as tílias,
― falenas revoavam ―
posto pobre, impostura.

Híbridos fardos pesando sobre
a casta abençoada.
A carícia cortante ameaçando
corças frementes,
amargos beijos só prometidos, não concedidos
ao pajem disforme, em pé, de porte augusto.

Donde chegamos?
As pequenas pedras do vasto caminho
lembram-nos os cascos
do corcel lucente.
Caminho coleante, casa abandonada,
hibiscos pardos, acerbas cerejas ―
melhor contar os fatos:
não somos daqui.
Seiva perdida, só sobra o rito, a larva.
Ao fundo a ilha, semovente e morta,
as ânsias inocentes,
viagem, romãs em sangue,
as mangas explodindo
― e enorme laje ao pé da porta augusta.
E as doces sapotilhas,
nobres aspargos, ervas comuns,
portão, pedra insegura,
mulher queimando gatos
recém-nascidos.
E mudamos de casa
(não vamos por aí)
trocamos de casaco e fomos para a guerra
(granadas reboavam sobre o mangue)
e mudando de casca percorremos a terra.

Severas perlas, sol sobre o rio, lágrimas.
Aonde vamos?
Mundo abandonado,
mundo recém-parido
― nosso peito embaixo
desta ferradura ―
o mundo brilha como de aço e corta
nossa esperança ―
os perenes potros da várzea comum
salvam-nos do asco,
as serenas pétalas de vosso carinho
levam-nos ao caos.

...

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2000, p.61. 

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