Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 23 de junho de 2011

memória de algumas lutas

Tenho vivido coisas difíceis, angústias na largueza que a palavra angústia comporta ando angustiada demais,  meu amigo , diz a personagem feminina do conto "Os sobreviventes" palavrinha antiga essa, a velha angst. Tudo que cabe nesta palavra, que torna o caminhar mais difícil. Não sei em que crônica de Clarice ela falava que corria riscos, como todo mundo. Não, era correr perigo, numa formulação lapidar: “Corro perigo como toda pessoa que vive.” A adjetiva restritiva que vive não deixa dúvida quanto ao estreitíssimo vínculo entre a vida e o perigo. Se for assim, nunca vivi tanto. E por essa intensidade a palavra perigo se converte em risco. Custou muito chegar até aqui. Num dos trechos do percurso, um professor falou-nos sobre o conto “Os sobreviventes”, e jogou luz sobre o mofo. A hora da estrela termina enigmaticamente: “Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.” Os morangos estão mofados.

Caio Fernando Abreu. Morangos mofados. 9.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.19.
Clarice Lispector. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.56.
Clarice Lispector. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.87.

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