Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 27 de outubro de 2010

heresia

Na aula de hoje, o objeto de atenção foi o Hino Nacional. Tomei da letra e fui colocando tudo na ordem direta, enquanto dizia aos alunos: olhem bem o que vocês estão cantando... Pois da forma como foi composto, em plena época áurea do floreado parnasiano e do gosto desmedido pelo ornato verbal, é quase impossível atinar com o que está sendo dito/cantado. E o Hino Nacional pede, em bom português, nada mais nada menos que nossa vida, nosso incondicional amor pela pátria mãe gentil, idolatrada, salve, salve! Alguns trechos, em ordem direta: "O nosso peito desafia a própria morte". "Mas, se (tu, Brasil) ergues a clava forte da justiça, verás que um filho teu não foge à luta, (e) quem te adora nem teme a própria morte" ― não é fácil, alguns torneios linguísticos confundem, pois dominam a letra o vocativo Brasil, duplicado em termos congêneres, e os apostos, desdobrando o vocativo. O fato é que a pátria não tem sido, historicamente, gentil com todos os seus filhos, indistintamente. Em adição, alguns filhos da pátria entenderam esse amor irrestrito de forma irrestrita, sem trocadilho, e saíram a pilhar tudo o que podiam. Resultado: depende da margem do Ipiranga que tocou a cada um dar seu brado de Independência, quando pôde fazê-lo. E pelo visto são muitas as margens, nem todas ouviram o tal brado retumbante. Alguns alunos perceberam a armação linguística, a armadilha verbal. Há uma história contada por José Miguel Wisnik, e confirmada pelo filme dedicado a Noel Rosa, de que o ilustre compositor teria, no samba "Com que roupa?", colocado o primeiro verso ― "Agora eu vou mudar minha conduta"  na melodia do hino. Muda bastante o sentido. Avisado por um amigo, ele alterou a melodia do verso.

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