Entre as doutrinas de Tlön, nenhuma mereceu tanto escândalo como o materialismo. Alguns pensadores o formularam, com menos clareza que fervor, como quem antecipa um paradoxo. Para facilitar o entendimento dessa tese inconcebível, um heresiarca do primeiro século ideou o sofisma das nove moedas de cobre, cujo renome escandaloso equivale em Tlön ao das aporias eleáticas. Deste “raciocínio especioso” há muitas versões, variam o número de moedas e o número de achados; eis aqui a mais comum:
“Na terça feira, X atravessa um caminho deserto e perde nove moedas de cobre. Quinta feira, Y encontra no caminho quatro moedas, um pouco enferrujadas pela chuva de quarta-feira. Sexta-feira, Z descobre três moedas no caminho. Sexta-feira de manhã, X encontra duas moedas no corredor da sua casa.” O heresiarca queria deduzir desta história a realidade ― id est, a continuidade ― das nove moedas recuperadas. “É absurdo (afirmava) imaginar que quatro das moedas não existiram entre terça e quinta-feira, três entre terça-feira e a tarde de sexta-feira, e duas entre terça-feira e a madrugada de sexta-feira. É lógico pensar que existiram ― ainda que de algum modo secreto, de compreensão vedada aos homens ― em todos os momentos destes três prazos.”
A linguagem de Tlön se opunha a formular esse paradoxo; os demais não entenderam. Os defensores do sentido comum limitaram-se, no início, a negar a veracidade do episódio. Repetiram que era uma falácia verbal, baseada no emprego temerário de duas palavras neológicas, não autorizadas pelo uso e alheias a todo pensamento severo: os verbos encontrar e perder, que implicam uma petição de princípio, porque pressupõem a identidade das nove primeiras moedas e das últimas. Recordaram que todo substantivo (homem, moeda, quinta-feira, sexta-feira, chuva) somente tem valor metafórico.
BORGES, Jorge Luis. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Ficções. Trad. Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 1998, Obras Completas I, p.482-483.
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