Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 26 de junho de 2011

entre terça e sexta-feira: moedas perdidas de Borges (ou o princípio da realidade)

Entre as doutrinas de Tlön, nenhuma mereceu tanto escândalo como o materialismo. Alguns pensadores o formularam, com menos clareza que fervor, como quem antecipa um paradoxo. Para facilitar o entendimento dessa tese inconcebível, um heresiarca do primeiro século ideou o sofisma das nove moedas de cobre, cujo renome escandaloso equivale em Tlön ao das aporias eleáticas. Deste “raciocínio especioso” há muitas versões, variam o número de moedas e o número de achados; eis aqui a mais comum:
“Na terça feira, X atravessa um caminho deserto e perde nove moedas de cobre. Quinta feira, Y encontra no caminho quatro moedas, um pouco enferrujadas pela chuva de quarta-feira. Sexta-feira, Z descobre três moedas no caminho. Sexta-feira de manhã, X encontra duas moedas no corredor da sua casa.” O heresiarca queria deduzir desta história a realidade ― id est, a continuidade ― das nove moedas recuperadas. “É absurdo (afirmava) imaginar que quatro das moedas não existiram entre terça e quinta-feira, três entre terça-feira e a tarde de sexta-feira, e duas entre terça-feira e a madrugada de sexta-feira. É lógico pensar que existiram ― ainda que de algum modo secreto, de compreensão vedada aos homens ― em todos os momentos destes três prazos.”
A linguagem de Tlön se opunha a formular esse paradoxo; os demais não entenderam. Os defensores do sentido comum limitaram-se, no início, a negar a veracidade do episódio. Repetiram que era uma falácia verbal, baseada no emprego temerário de duas palavras neológicas, não autorizadas pelo uso e alheias a todo pensamento severo: os verbos encontrar e perder, que implicam uma petição de princípio, porque pressupõem a identidade das nove primeiras moedas e das últimas. Recordaram que todo substantivo (homem, moeda, quinta-feira, sexta-feira, chuva) somente tem valor metafórico.

BORGES, Jorge Luis. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Ficções. Trad. Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 1998, Obras Completas I, p.482-483.

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