Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 29 de junho de 2011

melancolia

Uma pequena lembrança, meu irmão pequeno, quando pequeno, aprendendo a falar a palavra urubu... Uma pequena lembrança e o dia desanda, enquanto ando em vão procurando um lugar para almoçar. Por que a lembrança súbita? Ele tinha um jeito próprio de soletrar essa palavra, o erre não saía bem. Nós, eu e meus irmãos, a gente foi nascendo e se desencantando, nossos pais não sabiam o que fazer com a gente. Não puderam se evitar, não por amor, mas por essa outra lei que rege os destinos: uniram frustrações e dali acharam que poderia sobrevir alguma salvação, algum sentido para as suas vidas. Muito depressa ele se refugiou no álcool e ela na vaidade. Como não havia amor, nós nascemos porque assim era preciso: ter filhos para sustentar era uma forma de manterem-se ocupados, trabalhando dia e noite, sem parar, e depressa querendo de nós o mesmo, a ética do trabalho, da responsabilidade, do vencer (ser alguém) na vida. Eu não venci nada. Foi a vida que me venceu, me dobrou, me quebrou por dentro. O único amor que existiu, em migalhas, foi aquele que surgiu do sangue, mas arredio, e que por isso dói mais. O que minha memória consegue chamar de amor é em mim negação, e por isso talvez  me sinta tão incapacitada para o amor, ao mesmo tempo em que consigo enxergar em mim as qualidades que ensejam este sentimento. Meus pais foram minha iniciação brutal na vida. Mas como eles foram incompetentes em quase tudo, inclusive em serem incompetentes, então eles falharam, e por isso os filhos conseguiram se salvar deles, do estrago que eles poderiam ter causado caso tivessem conseguido destruir nos filhos a vida que negaram em si, se unindo. Eles bem que tentaram, mas aos poucos cada um se alforriou como pode. E se hoje me lembrei do meu irmão é que essa alforria teve seu preço. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário