Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 26 de junho de 2011

OS JORNAIS NÃO MENTEM

“Mas vejamos de perto a natureza dos contrastes que a retórica produtivista tem que enfrentar. É só abrir qualquer um dos jornais de grande público de São Paulo ou do Rio. São parte conspícua de uma imprensa que se quer moderna e, com certeza, influi nas mentes e nos corações de alguns milhões de leitores cultos e semicultos. O que vamos encontrar? Na segunda e na terceira páginas, editoriais sisudos que louvam o trabalho controlado, a economia austera, a administração proba, a escola rigorosa, a política responsável, uma basta à inflação, ao desperdício, à corrupção, ao golpismo etc. Fala nesses textos o superego social-democrata do centro. Mais adianta, vêm os cadernos de ‘cultura’, lazer, cotidiano, turismo, dinheiro e moda. Aí se amontoa toda sorte de isca para o consumo desbragado, para o uso e abuso do descartável, para a especulação associal, para a transgressão, a anomia, a perversão, a barbárie. São instrumentos de uma orquestra imensa que, aparentemente, não podem afinar-se. ‘Vamos tocando!’, é a sua lei imanente. Que leitores deveriam cumprir religiosamente o grande pacto da austeridade, da poupança, da produtividade? Os mesmos nos quais se excita o desejo de tudo comprar e vender, tudo consumir e consumar, e para os quais o jornal monta um espetáculo de venalidade universal, irresponsável pelos efeitos daquele vórtice nonsense?

A orquestra não pode parar. Não há síntese, só aglutinação. O mercado internacional, objeto último do desejo de modernização, precisa de uma legião de homens e mulheres que com seus braços, mãos e olhos prestantes façam e refaçam sem interrupção as partes daquele ‘todo’ vendável, logo mutante e substituível. Aliciar sem o menor pudor os instintos dos consumidores usando a vanguarda da propaganda e do comércio é plus-moderno, sem dúvida, mas não dispensa a constituição daquele exército mudo que na retaguarda opera just in time e com o devido autocontrole. Mas para o Brasil pobre qual viria a ser o sentido desse trabalho coletivo que se quer modernizar? Até agora, tem sido entrar mais eficazmente em uma vasta engrenagem de produzir desigualdades. Seguramente, pede a justiça que se diga, não é esta a intenção dos social-democratas, all honorable men, que juntam em suas falas competitividade e equidade."

Alfredo Bosi. Dialética da colonização. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.370-371.

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