“Mas vejamos de perto a natureza dos contrastes que a retórica produtivista tem que enfrentar. É só abrir qualquer um dos jornais de grande público de São Paulo ou do Rio. São parte conspícua de uma imprensa que se quer moderna e, com certeza, influi nas mentes e nos corações de alguns milhões de leitores cultos e semicultos. O que vamos encontrar? Na segunda e na terceira páginas, editoriais sisudos que louvam o trabalho controlado, a economia austera, a administração proba, a escola rigorosa, a política responsável, uma basta à inflação, ao desperdício, à corrupção, ao golpismo etc. Fala nesses textos o superego social-democrata do centro. Mais adianta, vêm os cadernos de ‘cultura’, lazer, cotidiano, turismo, dinheiro e moda. Aí se amontoa toda sorte de isca para o consumo desbragado, para o uso e abuso do descartável, para a especulação associal, para a transgressão, a anomia, a perversão, a barbárie. São instrumentos de uma orquestra imensa que, aparentemente, não podem afinar-se. ‘Vamos tocando!’, é a sua lei imanente. Que leitores deveriam cumprir religiosamente o grande pacto da austeridade, da poupança, da produtividade? Os mesmos nos quais se excita o desejo de tudo comprar e vender, tudo consumir e consumar, e para os quais o jornal monta um espetáculo de venalidade universal, irresponsável pelos efeitos daquele vórtice nonsense?
A orquestra não pode parar. Não há síntese, só aglutinação. O mercado internacional, objeto último do desejo de modernização, precisa de uma legião de homens e mulheres que com seus braços, mãos e olhos prestantes façam e refaçam sem interrupção as partes daquele ‘todo’ vendável, logo mutante e substituível. Aliciar sem o menor pudor os instintos dos consumidores usando a vanguarda da propaganda e do comércio é plus-moderno, sem dúvida, mas não dispensa a constituição daquele exército mudo que na retaguarda opera just in time e com o devido autocontrole. Mas para o Brasil pobre qual viria a ser o sentido desse trabalho coletivo que se quer modernizar? Até agora, tem sido entrar mais eficazmente em uma vasta engrenagem de produzir desigualdades. Seguramente, pede a justiça que se diga, não é esta a intenção dos social-democratas, all honorable men, que juntam em suas falas competitividade e equidade."
Alfredo Bosi. Dialética da colonização. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.370-371.
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